Um dos fenômenos das grandes cidades, a dinâmica de migração pendular submete estudantes a horas de um cansativo translado diário


Mário Damasceno quer ser médico. Atualmente no sexto semestre na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), ele enfrenta desde o primeiro dia de faculdade um desafio diário que a maioria dos seus colegas desconhece: a migração pendular.
Morador de Maracanaú, cidade na Região Metropolitana de Fortaleza, Mário enfrenta duas horas e meia de locomoção todos os dias para frequentar as aulas. Diferente de alguns de seus colegas, que vêm do interior ou de outros estados, a distância não faz com que Mário precise sair da casa dos pais, mas pesa na rotina diária do futuro médico.

O fenômeno da migração pendular tem se intensificado à medida que a urbanização e a expansão das cidades criam novas dinâmicas de deslocamento. O caso de Mário não é o único. Diariamente, estudantes universitários enfrentam longos traslados entre suas residências e instituições de ensino, revelando a necessidade de melhorias na infraestrutura de transporte rodoviário da crescente metrópole alencarina.
Esse deslocamento não apenas consome tempo considerável, mas também impõe uma série de dificuldades logísticas e psicológicas. Para Mário, o tempo gasto no transporte impacta significativamente sua rotina acadêmica e pessoal, levando-o a faltar aulas quando o custo-benefício do deslocamento não justifica a presença. A lotação dos ônibus, a falta de ar-condicionado e a necessidade de viajar em pé contribuem para um ambiente que afeta sua saúde mental e qualidade de vida.
Se em um dia eu tiver apenas uma aula de duas horas e o conteúdo dessa aula já estiver gravado em outra plataforma, eu geralmente opto por faltar, porque não compensa (...) depois de um dia cansativo na faculdade, enfrentar um transporte público lotado, sem ar-condicionado e ainda ter que viajar em pé realmente é um fator estressante — MÁRIO DAMASCENO, estudante
A situação dos estudantes é amplamente refletida nas análises de especialistas em transporte, como comenta Juliana Tréz, mestre em Engenharia de Transportes pelo programa de Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes (Petran) da UFC e analista na Transitar Consultoria, empresa especializada em mobilidade urbana.
Juliana explica que a acessibilidade na Região Metropolitana de Fortaleza é considerada baixa. A concentração de oportunidades de emprego nos bairros Centro e Aldeota e a estrutura deficiente de transporte público contribuem, segundo Juliana, para um cenário onde muitos residentes enfrentam longas jornadas diárias.
"Além disso, muitos usuários precisam utilizar mais de uma linha de ônibus para chegar ao destino. Já no caso do metrô, os tempos de espera são menores, no entanto, a questão da integração tarifária pode ser um empecilho, pois muitos usuários precisam utilizar o metrô e um transporte complementar para chegar ao local de destino, sendo o valor total gasto com o deslocamento elevado para o orçamento", explica a engenheira.

Quanto tempo diário você passa no transito entre casa, trabalho e estudo?
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A solução possível passa pelo poder público
Juliana aponta a conurbação urbana, que resulta na junção de cidades e na sobrecarga do sistema de transporte, como um fator crucial que demanda uma gestão metropolitana integrada.
Sem um planejamento metropolitano eficaz, as soluções para melhorar a conexão entre municípios e otimizar o sistema de transporte permanecem limitadas. A implementação de uma gestão metropolitana poderia permitir uma coordenação mais eficiente e um planejamento mais coeso, abordando de forma mais eficaz as necessidades de mobilidade da população.
Além das soluções estruturais, é fundamental considerar a predominância do transporte coletivo como uma estratégia para enfrentar a demanda crescente. A atual infraestrutura rodoviária e de transporte público não é suficiente para acomodar confortavelmente o fluxo de pessoas, especialmente com o crescimento contínuo da cidade e a preferência por transporte individual.
Algumas políticas adotadas nos últimos anos, como o passe livre estudantil, aprovado com unanimidade na Câmara Municipal de Fortaleza em 2023 e posteriormente sansicionado pela Prefeitura, ajudam para diminuir o fardo da comuntação diária.
Posteriormente, o programa Vai e Vem, criado política criada em nível estadual, permitiu que estudantes da região metropolitana venham para Fortaleza e vice-versa sem pagar a taxa da tarifa. O programa foi posteriormente expandido para incluir pessoas em busca de emprego.
Segundo a especialista, para além de programas distintos, seria importante a integração, já que as prefeituras e o governo estadual dividem as jurisdições no transporte.
O fator limitante atualmente é a falta de integração tarifária, um ponto difícil de resolver, pois os modos de transporte possuem jurisdições distintas. O sistema de ônibus, que inclui ônibus municipais, intermunicipais e metropolitanos, está sob jurisdição municipal, enquanto o metrô está sob jurisdição do Governo do Estado — JULIANA TRÉZ, engenheira
A criação de uma gestão metropolitana eficaz, a expansão e aprimoramento da rede de transporte público e a integração tarifária entre diferentes modos de transporte são medidas essenciais para enfrentar os desafios impostos pela migração pendular e melhorar a qualidade de vida não só de estudantes, mas de todos os residentes da região.

Gabriel Pacheco: a migração diária
Gabriel Pacheco é estudante de Biologia da UFC, ele vive a migração pendular diariamente ao se deslocar de Maracanaú para Fortaleza. Assista a um perfil relatando algumas das dificuldades do estudante:

Quem opta por morar em Fortaleza não deixa de encontrar dificuldades
Cleófita Suassuna, estudante de Engenharia Química, também relata dificuldades com o transporte pendular. Agora residente de Fortaleza, ela nasceu em Itaitinga, enfrentando um trajeto diário de 6 horas no ônibus — sendo 3 horas em cada sentido.

A mudança para Fortaleza foi motivada pela necessidade de uma rotina mais prática e pela dificuldade de equilibrar o transporte diário com suas atividades acadêmicas e pessoais. A falta de integração entre ônibus e metrô, além de custos elevados com transporte e manutenção da residência, são questões que complicam ainda mais a situação.
Cleófita relata, contudo, sentir as dificuldades impostas pela distância da família. "Eu sinto muita falta porque, antigamente eu falava muito com meu pai, todo dia eu falava com meu pai, nem só pessoalmente mas também pelo celular”.
Além da graduanda em Engenharia Química, outro estudante que optou por realizar a mudança permanente para a capital foi o jovem Marx Furtado, original da cidade de Trairi. O aluno de Licenciatura em Física da UFC reside com familiares e ajuda com as despesas da casa graças, inicialmente, a bolsas e, atualmente, ao seu trabalho.
Questionado sobre o regresso a sua cidade nos finais de semana, Marx cita “Me sentia melhor quando voltava”, mas a rotina corrida o fez se ver na obrigação de ter que realizar a migração definitiva. O estudante relata que o transporte não conseguia entregar a ajuda necessária para a sua permanência na Universidade por não oferecer ônibus com cargas horárias ampliadas, de acordo com o jovem, a chegada seria após a meia-noite. Portanto se torna inviável ir e vir diariamente para Trairi, por isso a escolha.
Querendo ou não foi uma nova fase da minha vida onde experimentei coisas novas e pude aprender muito além do que só nos estudos, já vim estudando em outra cidade desde o ensino médio, então não tive regalias normais de estudantes que moram na mesma cidade em que estudam — MARX FURTADO, estudante

Hellen Queiroz: pacajuense em Fortaleza
Hellen Queiroz, 21 anos, jornalista, pacajuense. Em vias de colar grau na UFC, ela opta por continuar a morar na Capital, mas não deixa de sentir saudades da família. Veja no vídeo o relato da recém-graduada:

As oportunidades estão distantes de casa
Um ponto central da discussão sobre migração pendular à capital cearense é a ampliação das oportunidades de crescimento pessoal e profissional para as pessoas residentes das regiões metropolitanas.
Esse é o caso de Beatriz Chagas, estudante de direito da Universidade Maurício de Nassau - UNINASSAU, instituição particular. Pacajuense de origem, Beatriz trabalha no Centro de Fortaleza para pagar sua faculdade e auxiliar nas despesas de casa. Apesar de cogitar a mudança integral para mais perto de suas obrigações, a jovem de 21 anos vetou a ideia por ser financeiramente desvantajosa.
Eu já considerei morar aqui em Fortaleza durante a minha graduação, só que o empecilho são os gastos porque ficam muito altos. Eu faço faculdade da Uninassau da Aguanambi e é particular, então além da despesa mensal da mensalidade, eu teria que ter gasto com aluguel, com comida, contas. Enfim, então não daria certo por conta desse motivo — BEATRIZ CHAGAS, estudante

Para conseguir ter acesso ao transporte gratuito disponibilizado pela prefeitura, a estudante reside temporariamente com familiares na região mais central da cidade de Pacajus e aos finais de semana retorna ao distrito de Pascoal, localidades separadas por cerca de 18 km. Porém, os ônibus realizam apenas rotas universitárias e param de funcionar no período de férias, o que torna a locomoção de pessoas que trabalham em Fortaleza mais difícil nesses momentos, porque, de acordo com a Beatriz “eles têm que se virar sozinho”.
No fim do ano passado, em um dos ônibus universitários, a Prefeitura de Pacajus impediu alguns alunos de realizar o embarque alegando haver restrições para utilização do transporte. O prefeito Bruno Figueiredo (PDT), à época anunciou que estudantes universitários que usam o transporte gratuito da prefeitura para ir às aulas em Fortaleza seriam obrigados a realizar um trabalho voluntário obrigatório. Tal medida foi suspensa dias depois pela Justiça, e o prejuízo acabou sendo apenas psicológico.
Além dessas dificuldades, a saudade de casa, o cansaço físico e mental e o tempo perdido em viagem também são problemas que os jovens em busca de melhores oportunidades enfrentam diariamente. Beatriz, em entrevista, cita sobrecarga emocional ao realizar a migração pendular “então você não tem tempo para para associar as coisas, você fica exausta então acaba que sobrecarrega as emoções e impacta diretamente, infelizmente, tanto em mim mesmo como nos outros”. Entretanto, os ônus de residir em uma cidade e estudar ou trabalhar em outra são obstáculos a serem superados.
Eu pretendo continuar trabalhando aqui em Fortaleza, conseguir um emprego por aqui por conta da facilidade como eu moro em Pacajus é mais dificultoso, porque querendo ou não, como são poucos habitantes a demanda é menor e para o curso que eu faço a gente depende muito das pessoas irem procurar, quererem informação, enfim e aqui em Fortaleza seria o lugar ideal — BEATRIZ CHAGAS, estudante
Assim, apesar do sonho de melhores condições em sua cidade natal, a realidade costuma bater à porta e trazer pessoas como a Beatriz para a capital. O leque de oportunidades que a cidade alencarina oferece é muito maior quando comparado às suas vizinhas metropolitanas. Portanto, a presença de ônibus públicos é um fator significativo desde que entregue um serviço digno e de qualidade a população.

O transporte é mais que um suporte
A formação de um bom profissional não depende apenas dos momentos vividos dentro de uma sala de aula, mas principalmente do suporte dos responsáveis e das interações com amigos e colegas de graduação. Para a aluna de 25 anos do curso de engenharia química da UFC, Joyna Cipriano, moradora do município de Paraipaba, o translado de uma cidade a outra dentro do ônibus serviu para construir grandes amizades ao longo da graduação além de contribuir com momentos de estudo e melhoria pessoal.

Eu já vi muita gente no ônibus estudando, fazendo outras coisas, e a gente também faz grandes amigos, né, a gente às vezes vem conversando, se distraindo, tornando a viagem que é cansativa, porque eu não vou mentir, é uma viagem cansativa, mas a gente acaba tornando ela mais simples — JOYNA CIPRIANO, estudante
Ela ainda destaca a importância do transporte público e o fomento de mais programas sociais que promovam o acesso ao ensino superior. A prefeitura de sua cidade também visualizou isso e criou o projeto “Acesso à Universidade” para fornecer ônibus de forma gratuita aos estudantes.
Tal ajuda foi primordial para Joyna que, após um período inicial morando em Fortaleza, retornou a Paraipaba. Dessa maneira, esse regresso foi fundamental durante a sua formação acadêmica, pois a fez sentir mais segurança, principalmente por ter, em sua cidade, o carinho e companheirismo da sua família.
E ter a chance de, toda noite, voltar pra dormir em casa e estar em casa com a abertura do projeto, foi tipo, muito importante pra mim, sabe? E eu vejo que eu tenho uma oportunidade que muita gente não tem: de poder estudar em uma cidade e voltar para trabalhar e dormir em casa [...] E pra mim, como pessoa, pelo momento que eu estava vivendo, foi muito bom pra minha saúde mental, eu poder voltar todos os dias pra casa da minha mãe, onde eu me sentia segura — JOYNA CIPRIANO, estudante
Por fim, a jovem relata também a experiência de outras pessoas dentro do transporte e enfatiza a formação pessoal e profissional de colegas e amigos promovida pelo programa de apoio ao acesso às universidades. De alguma maneira os estudantes visam retribuir o benefício de utilização do equipamento durante a graduação. “Até profissionais que antes aqui não tinham, hoje tem, que são os profissionais como fisioterapeuta, cientistas, enfermeiros, que conseguiram se formar”, conclui Cipriano.

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